02 novembro 2008

Viagem

Pela estrada escura, conduzo ao som da música calma da rádio. O breu é rasgado pelas luzes dos faróis, da mesma forma que o silêncio apenas é cortado pela melodia que invade o espaço.
Ocasionalmente, um veículo em sentido contrário ofusca-me com os seus máximos, momentos antes de os mudar.
Sinto-me em paz, com vontade de continuar a viagem, seguir sem rumo, como se todos os caminhos me levassem até ti e não me importasse com isso.
Vejo a paisagem passar por mim, não muito rapidamente e recordo-te, passageiro.
Sei-me solitária, penetrando na escuridão da noite, iluminada pelas luzes do carro, as estrelas que brilham alto no céu e acompanham o luar. Não falo comigo, nem contigo. Deixo-me ouvir a música, apenas, como se fossem aquelas notas que me ditassem a direcção a tomar. Não me detenho na letra, no significado nas palavras; somente a melodia que me embala e me conforta.
Esqueço os pensamentos e até a ti te olvido, como se ficasses para trás, junto com as árvores por que passo. E no entanto, sinto-me como se fosse até ti, te encontrasse, finalmente.
Penso em não parar, seguir ao sabor do rumo que escolher, instintivamente. Como se o meu destino fosse esta estrada que percorro na noite. Como se o meu caminho desembocasse nos teus braços.
Mas prefiro esquecer o teu silêncio, a tua hesitação. Fico a ouvir a música, vendo a estrada sem fim. Não me apetece chegar, nem partir. Apenas continuar, em diante, perseguindo a lua e as estrelas até que o sol surja no horizonte, num novo dia igual ao outro que findou e ao que há-de vir, depois.
Perder-me, sim, quero perder-me. Já que não em ti, ou por ti, mas por esses caminhos. Não voltar atrás. Descobrir o que está para a frente, recomeçar de um novo ponto de partida.
Desinteresso-me por percursos, rotas, trajectos, planos. Apetece-me o abismo que a noite me oferece, trilhando a estrada, sozinha, ao som da música. Enfrento os medos, os fantasmas, as alucinações, como se no final do caminho encontrasse um fabuloso nascer do sol, cuja luminosidade me contagiasse a vida e esta fosse a última treva que vivo.
E que nesse ponto, no fascínio de um novo dia, numa nova paisagem, tudo fosse novamente possível, tudo recomeçasse, sem final previsto, sem ocaso, crepúsculo ou escuridão. Redescubro a nitidez, abandono a obscuridade num amanhecer imutável, perene, como se o tempo parasse ali de forma eterna e me cristalizasse no recomeço. Sem erro, sem passado, nem sequer futuro. Somente o momento da aurora, do reinício.
Passo a passo, metro a metro, regresso. Pretendo regressar e tornar a partir, vezes sem conta, em viagens desconhecidas, familiares. Ausentar-me e estar presente, perder-me e reencontrar-me, terminar e inaugurar. Viajar, no tempo, em mim, nos outros, na estrada, no mar, no ar e no éter. Perseguir o devir, uma e outra vez, nessa busca infrutífera mas desfrutada.
Encontro o meu olhar no espelho que me indica o final da jornada, desta jornada.
Abrando a velocidade, chego novamente com a certeza que tornarei a ir, demandando novos horizontes ainda que se convertam em utopias ou em entropias.
O percurso interrompe-se, repetidamente. Ora, circuito, ora vórtice, sei que está ali por descobrir, que me aguarda e que devo seguir todos os rumos que se me oferecem nesta viagem como em todas.
A escuridão permanece ainda, maior com as luzes desligadas. No céu, a lua e as estrelas cintilam, indiferentes à minha rota, ou ao meu destino. Sorriem da minha insistência em o procurar, mas não me dizem para desistir.
Olhando, uma última vez, essas companheiras de viagem, entendo que me incentivam com a sua presença constante. Também elas recomeçam, dia após dia, noite após noite, o seu trajecto no universo. Não por mim, não para que as observe e me sinta acompanhada ou para me motivar, mas por que assim é.
E nessa mensagem de tenacidade e preserverança, compreendo que espero o momento em que a sucessão dos acontecimentos esteja nas minhas mãos e perca a sua imutabilidade. Na consciência de que inalteráveis no seu esplendor, se manterão para sempre, companheiras de viagem, sussurro-lhes a minha fidelidade, independentemente do meu ponto de observação.

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