14 janeiro 2009

Claudicante


Caminhando pela rua, sentia o sol de inverno na face. Os meus cabelos esvoaçavam com o vento, embora os tentasse manter presos sob os óculos de sol. Ainda assim, arrisquei acender um cigarro. Lutando contra o vento e contra o raio desta invenção de isqueiros com segurança contra acidentes infantis. Usar ambas as mãos para conseguir fazer a força suficiente na mola para provocar a faísca, amparar o vento e conseguir que o cigarro acendesse, era tarefa para Hércules!
Mas como eu gosto de superar desafios, lá segui o meu caminho, de cigarro aceso, após muita luta e persistência.
Pé ante pé, literalmente, subi os degraus que conduziam àquele serviço que como tantos outros, não possuia melhor acesso. Assim, lá tinha eu de cuidadosamente, subir cada um bem lentamente, para evitar a dor.
Reencontrei o meu equílibrio, retomei a postura e talvez claudicando - só dou por isso quando a dor ou a rigidez é mais intensa - lá percorri o corredor.
Apresentei-me, dizendo ao que ia.
Mandaram-me aguardar e assim fiz. Sentia calor porque o sol estava quente, mas sentia-me bem, aconchegada. De perna traçada, ia balançando o pé no ar. Esperando...
Olhava para o relógio e recordava o esforço feito para chegar antes da hora marcada, da qual passavam agora cerca de 30 minutos.
Pensava em ir fumar outro cigarro, mas a ideia de descer e subir as escadas logo me fez desistir desse projecto. Assim, continuei a balançar o pé...
Finalmente me chamavam!
Levantei-me, dois segundos de pausa antes de começar a marcha para mecanizar a operação da melhor forma... digamos, menos claudicante.
Segui a senhora até um gabinete minúsculo, onde me sentei noutra cadeira estofada. E como é meu hábito, coloquei as mãos de forma a esconder o mais possível da sua deformidade.
Conforme esperava, perguntavam-me pela minha deficiência. E eu expliquei que tinha uma doença crónica invalidante, uma série de cirurgias correctivas, mais os pormenores das «peças» acrescentadas, blá, blá, blá.
E a senhora olhava-me atentamente. E perguntou-me:
- Essas manchas na pele na sua cara...?
Apressei-me a responder:
- É uma das características da doença. Não posso apanhar sol; tenho de usar um protector.
- Sim, mas podia pôr um cremezinho...
E mesmo sentada, ali à frente dela, claudiquei.
Encolhi os ombros e continuei a responder às perguntas idiotas que me iam sendo feitas. Percebera naquele momento cremoso, a profundidade da ignorância e da tacanhez daquela senhora. Abstive-me de responder à altura e procurei abreviar o mais possível a entrevista, porque não garantia conseguir claudicar por muito mais tempo. É um vício meu, adquirido ao longo de muitos anos de prática: evitar claudicar.
Respirei fundo e com um sorriso correspondente ao nível de curiosidade quase brejeira daquela técnica superior, mas sem dúvida, superior ao seu nível de sensibilidade humana, consegui manter a postura.
Gostava de não ter claudicado... ou se calhar devia ter claudicado mais ainda.
Por um lado, suponho que devia ficar contente, não fosse o meu mau feitio ou uma certa dose de irreverência contida.
Assim para já, pergunto-me como irei conseguir abrir o sacana do iogurte líquido que aqui tenho ao lado e que tenho vontade de beber?
Só me falta fazer o pino ou ir acordar alguém para fazer o favor de me desenrascar, digo desenroscar a tampa.
Soubera eu antes que a toda a minha vida, deficiência ou doença crónica, seriam bem melhores, pusera eu um cremezinho na cara...!
De face luzidia e bem besuntada, todos os problemas se resolveriam, escorregando numa aparência lustrosa. Imagino até que sim, que faria toda a diferença. Pelo menos evitaria observações similarmente ridículas de outra débil mental clonada daquela ao serviço do funcionalismo público. Sem dúvida!
Prometo que para a próxima, em vez de claudicar, e porque duvido muito que me ocorra recorrer ao creme, muito possivelmente responderei a um desses detectores de baixa auto-estima:
- Com toda a certeza que sim. Um cremezinho na face, pois então! Pode ser que quando eu não tiver de matar a cabeça a descobrir, por exemplo, como consigo abrir um iogurte líquido para beber à 1 da manhã ou acender um isqueiro com protecção contra crianças ... em suma, quando eu não tiver outros problemas comezinhos deste género para resolver, em relação ao meu quotidiano, deficiência e doença crónica, pode ser que comece, então, a preocupar-me com as manchas que não passam e a disfarçá-las com todos os cremes do mundo: se eu conseguisse abrir a embalagem.
Neste momento, eu até experimentava iogurte de frutos tropicais, podia até ser que hidratasse...
Quem sabe, um pouco desse creme na tampa do frasco de iogurte...!?
Ou então...
Nota 1.
Imagem de Alexei von Jawlensky (doente de Artrite Reumatóide), Abstract Head: Slanted Eyes, 1930.
Nota 2.
Claudicar:
do Lat. claudicare, coxearv. int., coxear, manquejar;fig., hesitar, vacilar; errar; cometer falta.

1 comentário:

Carmo disse...

Enfim... que dizer... há muita gente que devia era limpar a cara das camadas de creme que tem e ver-se ao espelho... Abraço.